23 abril 2008

Fortuna

" Bem afortunado és, leitor desta crónica, se ainda ignoras o que seja a saudade intoleravelmente minaz, o angustioso pasmo ante a realidade inaceitável, a impressão de solidão, vazio, injustiça, que, ao fim de alguns dias, nos causa a morte de um ser bem amado. Ah, vê-lo só mais uma vez, ouvi-lo uma última vez, tocar-lhe uma vez mais, dizer-lhe tudo o que nunca se lhe disse, remediar todo o mal que se lhe fez!... Bem afortunado és, leitor, se, ao evocar um fantasma querido, tão presente e já vago, tão senhor da sua alma e, todavia, já esfumando-se nos pormenores físicos, não sentiste ainda o incompreensível, o cavo, o pavoroso, o gelado desta expressão: nunca mais!... E o tempo que tudo lima- até sobre o ardor destas chagas espalha a sua cinza: No lugar da carne viva, só fica um ponto mais sensível e uma cicatriz."

in RÉGIO, José , O Príncipe com orelhas de burro.

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