23 maio 2007

A Morgadinha dos Canaviais

A recente leitura da Morgadinha dos Canaviais sugeriu-me algumas reflexões . Leitura fácil e, no entanto, aprazível. Diversos estilos de linguagem adaptados a cada personagem, que realçam as suas características citadinas ou aldeãs. Entre as reflexões do narrador sobre os problemas do desenvolvimento das aldeias, sobre perspectivas políticas e crítica à corrupção da alma, o que mais se valoriza (talvez para captação da atenção de um público alvo) é o contraste das classes sociais e as relações entre personagens. Pelo título descobre-se a personagem que protagonizará a história principal, mas não será a minha favorita. Personagem astuta e inteligente, mas, ao mesmo tempo, presa a preconceitos. Torna-se ridícula a importância atribuída a uma personagem que, no final, evidencia comportamentos preconceituosos, apesar de afirmar o contrário.

Não tendo eu uma visão muito positiva sobre o amor, não me convém olhar para esta obra sob uma perspectiva amorosa. Já que, ao ler, o que me ficou evidenciado foi a não existência do amor.

O amor é para mim sinónimo de hábito. O que as pessoas procuram é o hábito. Este, conjugado com uma boa aparência e uma superficial identificação de ideais, torna-se mais forte e difícil de abandonar. O medo de Henrique de ficar sozinho, faz com que se "apaixone" por uma rapariga (inconsciente e ingénua, típica mulher casadoira) de aspecto físico angelical. Essa paixão surgiu, depois, de esta personagem ter vivido sobre os cuidados da doméstica. Um amor que surgiu dos hábitos domésticos. Note-se, que, na mesma obra, se faz referência à D. Doroteia e à sua criada, ambas da mesma idade, que habitam a mesma casa e quase a mesma personalidade. Aí está o hábito, um amor que aparentemente não se concretizou fisicamente, pelo menos assim quis fazer sobressair o narrador: " A inalterável harmonia, mantida havia tantos anos entre as duas, poderia ser exemplo à maior parte das famílias deste mundo. Entre velhas, que nunca tiveram filhos, circunstância que em geral faz o humor mais acre e desabrido, era tanto mais para admirar o caso." O hábito, a aceitação dos erros dos outros (desde que esses aceitem os nossos), o medo da solidão cria o famigerado amor. Não há caras-metade, há a criação de ideais de hábito. Isto é, analisa-se uma pessoa exterior e interiormente para se reflectir o quanto teríamos de mudar e prescindir para nos libertarmos dos ferros da solidão. É tudo uma questão de percentagens. Existem pessoas com hábitos parecidos com os nossos, outras que chocam de tal maneira que é impossível uma relação duradoira (embora, por vezes, se tente salvar a relação por uma questão física - há apenas o prolongamento da dor).

Esse medo da solidão é o mesmo medo que temos da morte. Para além de inevitável, não é mau. É misterioso, novo, mas não mau. Tanto a vida como as relações têm mais aspectos negativos do que a solidão e a morte. O hábito/ amor é a aceitação da irreflexão, do domínio da inconsciência, do consentimento do sofrimento e do laissez-faire. O amor é o comodismo, a porta fechada para viagens ao conhecimento. A prisão do hábito/ amor não pode co-ocorrer com a liberdade de opções. É-me impossível, portanto, amar e compreender aqueles que afirmam amar. O amor é de evitar, devemos sempre procurar atingir o nosso melhor enquanto seres humanos e não nos acomodarmos com a visão complacente de uma pessoa que consente os nossos vícios. Amor não é antónimo de ódio, mas sim um desvio, uma variante. O ódio só nasce se se relacionar os defeitos/ qualidades de uma pessoa connosco. Também o amor. O que os distingue é que o ódio exige revolta, o amor consentimento. Longe de mim valorizar o ódio. Pelo contrário, para se odiar é necessário ter experimentado o amor. Nem um nem outro são aconselháveis. Os dois provocam sofrimento. O que eu valorizo é vontade e concretização da mudança. Mudança de vícios, transformação de defeitos em qualidades, ajuda na auto e hetero-estima. Aconselho a não utilizar seres humanos para fugir à inevitabilidade. Utilizem o papel como eu.

P.S. Na leitura de Madame Bovary encontrei algo que corrobora a minha tese : " ... não teve dificuldade em se convencer de que a paixão de Charles nada mais tinha de extraordinário. As suas expansões haviam-se tornado regulares; beijava-a a determinadas horas. Era um hábito entre outros, como uma sobremesa previamente preparada, após a monotonia do jantar."

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